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04/Jul/2020 - 22:28:33
As beguinas
Maria Olívia GarciaA baixa Idade Média foi, ao contrário do que muitos afirmam,
um período fértil de ideias e de grande impulso renovador. Foram séculos de
inventividade, que precederam a Reforma e apresentaram outros traços
característicos da Modernidade e até mesmo da globalização.
Vários movimentos pauperísticos surgiram, como os cátaros,
os valdenses, os franciscanos radicais, os fraticelli e os goliardos, animados
por lideranças proféticas que buscavam afirmar a fé cristã por caminhos opostos
aos da religião eclesiástica, que se distanciavam do Evangelho, buscando a
riqueza e o luxo.
Esses movimentos se opunham à hierarquia da igreja buscando
a vida de simplicidade, pobreza e dedicação ao próximo. Entre eles, as beguinas também constituem uma
página relevante de dedicação à espiritualidade e ao cuidado com os enfermos e
pobres. Elas viviam em comunidades femininas conhecidas como
"Begijnhof"ou "Béguinages", conforme a região em que
atuavam: Flandres, Liège, Bruges, Antuérpia, etc.
Essas mulheres eram geralmente celibatárias ou viúvas, que
se organizavam na periferia das cidades, combinavam uma vida de oração,
trabalho autogestionário e serviço aos pobres, doentes e pessoas marginalizadas
da época.
Há referências que ligam o nome de "beguinas" a
Lambert le Bègue, a quem também se atribui a fundação do Movimento dos
Begardos, versão masculina dessa organização. Os Begardos surgiram por volta de
1215 na Alemanha, disseminando-se pela França, Holanda e Espanha, denunciando a
corrupção do clero e pregando uma vida fiel ao Evangelho e à experiência dos
primeiros apóstolos.
A versão mais aceita sobre as beguinas é que esse movimento
teve início nos arredores de Liège, na Bélgica, por volta de 1210, e não
possuía um santo fundador, não buscava autorização da hierarquia eclesiástica,
não tinha uma constituição ou regulamento, não fazia votos públicos e podiam
continuar com suas atividades normais no mundo.
Conforme alguns pesquisadores, essas mulheres procuravam um
estilo de vida que lhes permitisse autonomia do jugo masculino, ou seja,
autonomia em relação à obrigatoriedade de se casar ou de ir para o convento;
autonomia de estarem subjugadas a um patrão, em relação à autoridade oficial e
às autoridades eclesiásticas, áreas naquela época totalmente dominada pelos
homens.
Essas mulheres não queriam entrar em um mosteiro, mas
desejavam dedicar-se a viver conforme o Evangelho, então até os 30 anos de
idade moravam na casa de uma beguina mais velha. Com essa idade passavam a
viver sozinhas em uma casinha, dedicando-se ao trabalho e ao serviço dos
pobres, doentes, marginalizados e anciãos. Muitas vezes uma rua inteira era
formada por essas casinhas e em algumas cidades formavam uma vila inteira.
O interessante na história desse movimento é que, no início,
era visto pela igreja como uma atividade beneficente e útil, porém conforme as
beguinas foram se consolidando organicamente, trabalhando como mulheres livres,
começaram a ser mal vistas, até caírem nas garras da Inquisição e serem
condenadas como hereges pelo Concílio de Viena, em 1311. Pregar a divisão
equalitária dos bens e a vida na pobreza sempre foi um problema, até mesmo para
Cristo!
Foi o papa Clemente V que condenou as beguinas e os
begardos, com os decretos Ad nostrum (Para nós) e Cum de quibusdam mulieribus
(No caso de certas mulheres), demonstrando veemente oposição aos que desejavam
"introduzir na Igreja um tipo de vida abominável que eles chamam de
liberdade de espírito".
Então começou a "caça às bruxas", vitimando
mulheres como Marguerite de Porète, autora de um livro considerado de grande
sutileza intelectual e original por seu estilo literário profano, ao estilo dos
trovadores: "Le miroir des simples âmes" (O espelho das almas
simples), que narra o itinerário da alma que se despoja de todas as seguranças,
ultrapassa todas mediações, rumo ao encontro com Deus. Esse livro foi condenado
pelo Tribunal da Inquisição e Marguerite foi queimada viva em praça pública no
centro de Paris, em 1310.
Outras beguinas também entraram para a história, como
Hildegard de Bingen, mística, teóloga, compositora, pregadora, naturalista,
médica informal, poetisa, dramaturga e escritora alemã. Interessante é que essa
naturalista via o comportamento humano como capaz de alterar o meio ambiente e
atribuía a irregularidade do clima ao estado de incessante inquietude humana,
que confundia os elementos e os fazia saírem de seus limites, com resultados
desastrosos. Hildegard foi oficialmente proclamada santa e Doutora da Igreja
através de carta apostólica do papa Bento XVI, em 7 de outubro de 2012.
Em todas as épocas sempre houve mulheres que encontraram
alguma forma de contestar as regras impostas pelos homens, na tentativa de
viver conforme o que consideravam a forma ideal de existência e, graças a elas,
as gerações mais novas podem desfrutar de mais liberdade!